Sophia de Mello Breyner Andresen, escreveu no seu poema
Cantata da Paz
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
...
Cantata da Paz
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
...
Nos idos de 1973, Ruy Belo escreveu o
poema que passamos a transcrever:
A GUERRA COMEÇOU HÁ TRINTA E QUATRO
ANOS
Enquanto nesta manhã tão calma tão
horizontal tão lisa
que me apetece passar-lhe a mão pelo
dorso certamente dócil
manhã sem nenhuma ruga na testa e com
uma superfície total
que talvez se possa medir em
quilómetros quadrados
manhã primeira parte de um dia que
agora
depois de ter olhado o relógio sei ser
o dia um de setembro
enquanto nesta manhã como aliás nas
demais manhãs dos dias de praia
vou lendo atento o jornal e aqui
sentado com o mar ao fundo sei
entre outras coisas que o navio-escola
sagres voltou ao tejo
e que um soldado morreu como quase
sempre por acidente em angola
e que há serras em chama no funchal
chamas talvez destruindo
sítios porventura importantes na
evolução da acção de um romance que ando
a ler
de súbito sei e não só sei mas sinto
com uma sensibilidade mais funda
que a guerra começou faz hoje trinta e
quatro anos
Eu era então muito novo tão novo que
sentia necessidade de me encostar à
janela
e olhava talvez sem os ver os pauis que
havia nas traseiras da casa
Não sei se fazia mais alguma coisa mas
lembro-me que estava
junto à janela de costas voltadas para
a penumbra e olhava os pauis
e esperava que a minha mãe se acabasse
de arranjar para irmos todos
ao som de guizos e do trote do cavalo à
feira de rio maior
onde nunca mais voltei mas sei que
havia muitas barracas muitas pessoas
o gado todo a um lado e no meio do
calor e do pó
sabia bem beber sofregamente o líquido
gasoso de um pirolito
após uma leve pressão no berlinde de
vidro que obstruía o gargalo da garrafa
Devia sentir-me um pouco inquieto o
soalho rangeria sob os passos
alguma coisa oscilaria na habitual
monotonia da minha infância
quando ouvi dizer à minha mãe ou a
alguém que o viera à pressa dizer
à minha mãe que a guerra tinha
começado
Eu não devia saber nesse tempo muito
de guerras mas havia ainda
gaseados da primeira grande guerra na
minha pequena terra
lembrava-me da chegada precipitada de
grupos de gente
fugida em grandes carroças da guerra
de espanha
pressentia que muitas pessoas na guerra
ficaram a morder para sempre a terra
Na feira de rio maior donde o meu pai
lembro-me sempre voltava
com cadeiras de madeira de choupo e
cebolas para todo o ano
já os ardinas por entre a poeira
apregoavam os jornais
repetindo os dizeres dos grossos
títulos da primeira página
onde de uma maneira ou de outra se
dizia que a guerra tinha começado
E no meio daquela poeira muita gente
comprava o jornal e ficava
a saber por si que a guerra tinha
começado e as circunstâncias
mais ou menos pormenorizadas em que
tinha começado
Em grupos de gente aqui ou ali na terra
de barro vermelho
falava-se alto de dantzig de varsóvia
das diligências empreendidas pelas chan-
celarias anglo-francesas
das seis cidades polacas nesse dia
bombardeadas pela aviação alemã
Os dias depois começaram de novo a
correr eu em casa do médico
seguia nos mapas o avanço das tropas
alemãs
via na cidade inúmeros filmes ingleses
americanos e franceses
assistia a conferências da alliance
française e como no filme casablanca
cantava-se a marselhesa. Eu saía
sozinho da sala
era noite na rua e então eu saboreava
na boca as sílabas lentas
da vagarosa da vigorosa palavra
liberdade
palavra perigosa por vezes proibida
quase sempre mais ou menos discreta-
mente controlada
A comida faltava nesse tempo via-se bem
que faltava
formavam-se compridas bichas à porta
das lojas
o próprio pão era pouco na praia
comíamos pão de batata vindo de alfeizerão
Um dia alguma coisa no céu do tempo se
modificou lembro-me que
apedrejaram na cidade a sapataria onde
antes se distribuía
a propaganda nazi outra palavra pairava
no ar
era a palavra paz palavra pequena e
grande
Quase toda a gente da cidade saiu para
as ruas
sem eu perceber porquê um homem a meu
lado foi preso ao dar um viva à rússia
a bandeira do consulado inglês
ondulava ao vento entre as árvores
dançava-se nos largos até homens com
homens dançavam havia
uma grande fogueira no quintal ao lado
da casa onde eu estava
ficámos todos a falar longamente pela
noite dentro
Faz hoje precisamente trinta e quatro
anos que a guerra começou
a manhã de hoje é horizontal e lisa
sem rugas na testa
o sol ilumina os seus muitos
quilómetros quadrados de superfície
fecho o jornal e de súbito sem eu
próprio saber bem porquê
sinto pena de que agora que a guerra
acabou quase há vinte e oito anos
mais um soldado tenha morrido por
acidente em angola
RUY BELO – Todos os Poemas,
Círculo de Leitores, Lisboa,
2000, pp.476 a 478.
Nota: Ruy Belo, neste poema, transporta-nos até aos acontecimentos e suas consequências de quatro guerras, a saber: Primeira Guerra Mundial (1914/1918); Luta Contra a Implementação do Fascismo em Espanha (1935/1938); Segunda Guerra Mundial (1939/1945); e, Guerra Colonial, levada a cabo pela ditadura fascista de Portugal, onde morreram nove mil jovens portugueses, catorze mil ficaram deficientes físicos e cerca de cento e quarente mil com traumas de guerra (1961/1974).
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