domingo, 14 de fevereiro de 2016

RUY BELO, POETA E CIDADÃO UNIVERSAL

Sophia de Mello Breyner Andresen, escreveu no seu poema

Cantata da Paz

Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
...


Nos idos de 1973, Ruy Belo escreveu o poema que passamos a transcrever:


A GUERRA COMEÇOU HÁ TRINTA E QUATRO ANOS


Enquanto nesta manhã tão calma tão horizontal tão lisa
que me apetece passar-lhe a mão pelo dorso certamente dócil
manhã sem nenhuma ruga na testa e com uma superfície total
que talvez se possa medir em quilómetros quadrados
manhã primeira parte de um dia que agora
depois de ter olhado o relógio sei ser o dia um de setembro
enquanto nesta manhã como aliás nas demais manhãs dos dias de praia
vou lendo atento o jornal e aqui sentado com o mar ao fundo sei
entre outras coisas que o navio-escola sagres voltou ao tejo
e que um soldado morreu como quase sempre por acidente em angola
e que há serras em chama no funchal chamas talvez destruindo
sítios porventura importantes na evolução da acção de um romance que ando
                                                                                                              a ler
de súbito sei e não só sei mas sinto com uma sensibilidade mais funda
que a guerra começou faz hoje trinta e quatro anos
Eu era então muito novo tão novo que sentia necessidade de me encostar à
                                                                                                        janela
e olhava talvez sem os ver os pauis que havia nas traseiras da casa
Não sei se fazia mais alguma coisa mas lembro-me que estava
junto à janela de costas voltadas para a penumbra e olhava os pauis
e esperava que a minha mãe se acabasse de arranjar para irmos todos
ao som de guizos e do trote do cavalo à feira de rio maior
onde nunca mais voltei mas sei que havia muitas barracas muitas pessoas
o gado todo a um lado e no meio do calor e do pó
sabia bem beber sofregamente o líquido gasoso de um pirolito
após uma leve pressão no berlinde de vidro que obstruía o gargalo da garrafa
Devia sentir-me um pouco inquieto o soalho rangeria sob os passos
alguma coisa oscilaria na habitual monotonia da minha infância
quando ouvi dizer à minha mãe ou a alguém que o viera à pressa dizer
à minha mãe que a guerra tinha começado
Eu não devia saber nesse tempo muito de guerras mas havia ainda
gaseados da primeira grande guerra na minha pequena terra
lembrava-me da chegada precipitada de grupos de gente
fugida em grandes carroças da guerra de espanha
pressentia que muitas pessoas na guerra ficaram a morder para sempre a terra
Na feira de rio maior donde o meu pai lembro-me sempre voltava
com cadeiras de madeira de choupo e cebolas para todo o ano
já os ardinas por entre a poeira apregoavam os jornais
repetindo os dizeres dos grossos títulos da primeira página
onde de uma maneira ou de outra se dizia que a guerra tinha começado
E no meio daquela poeira muita gente comprava o jornal e ficava
a saber por si que a guerra tinha começado e as circunstâncias
mais ou menos pormenorizadas em que tinha começado
Em grupos de gente aqui ou ali na terra de barro vermelho
falava-se alto de dantzig de varsóvia das diligências empreendidas pelas chan-
                                                                                 celarias anglo-francesas
das seis cidades polacas nesse dia bombardeadas pela aviação alemã
Os dias depois começaram de novo a correr eu em casa do médico
seguia nos mapas o avanço das tropas alemãs
via na cidade inúmeros filmes ingleses americanos e franceses
assistia a conferências da alliance française e como no filme casablanca
cantava-se a marselhesa. Eu saía sozinho da sala
era noite na rua e então eu saboreava na boca as sílabas lentas
da vagarosa da vigorosa palavra liberdade
palavra perigosa por vezes proibida quase sempre mais ou menos discreta-
                                                                                       mente controlada
A comida faltava nesse tempo via-se bem que faltava
formavam-se compridas bichas à porta das lojas
o próprio pão era pouco na praia comíamos pão de batata vindo de alfeizerão
Um dia alguma coisa no céu do tempo se modificou lembro-me que
apedrejaram na cidade a sapataria onde antes se distribuía
a propaganda nazi outra palavra pairava no ar
era a palavra paz palavra pequena e grande
Quase toda a gente da cidade saiu para as ruas
sem eu perceber porquê um homem a meu lado foi preso ao dar um viva à rússia
a bandeira do consulado inglês ondulava ao vento entre as árvores
dançava-se nos largos até homens com homens dançavam havia
uma grande fogueira no quintal ao lado da casa onde eu estava
ficámos todos a falar longamente pela noite dentro
Faz hoje precisamente trinta e quatro anos que a guerra começou
a manhã de hoje é horizontal e lisa sem rugas na testa
o sol ilumina os seus muitos quilómetros quadrados de superfície
fecho o jornal e de súbito sem eu próprio saber bem porquê
sinto pena de que agora que a guerra acabou quase há vinte e oito anos
mais um soldado tenha morrido por acidente em angola

RUY BELO – Todos os Poemas, Círculo de Leitores, Lisboa, 2000, pp.476 a 478.

Nota: Ruy Belo, neste poema, transporta-nos até aos acontecimentos e suas consequências de quatro guerras, a saber: Primeira Guerra Mundial (1914/1918); Luta Contra a Implementação do Fascismo em Espanha (1935/1938); Segunda Guerra Mundial (1939/1945); e, Guerra Colonial, levada a cabo pela ditadura fascista de Portugal, onde morreram nove mil jovens portugueses, catorze mil ficaram deficientes físicos e cerca de cento e quarente mil com traumas de guerra (1961/1974). 

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