sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

RUY BELO: " A POESIA É UM ACTO DE INSUBORDINAÇÃO..."


Rui de Moura Ribeiro Belo nasceu a 27 de Fevereiro de 1933, em São João da Ribeira, concelho de Rio Maior.
Nesse mesmo ano, a 19 de Março, era aprovada a nova Constituição num plebiscito em que as abstenções foram contadas como votos a favor. E assim terminava a ditadura militar e se consolidava/instituía a fascista. Os direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, teoricamente reconhecidos no seu artigo 8.º, eram abolidos na legislação regulamentadora que mantinha a censura prévia, impedia o exercício  do direito de livre associação política e sindical e instituía a polícia política (PVDE - Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) sob controle directo do presidente do Conselho de Ministros. Polícia política, que também perseguiu, vigiou e controlou a vida de Ruy Belo.

Porque inquieto e subversivo com as palavras " A poesia é um acto de insubordinação a todos os níveis, desde o nível da linguagem como instrumento de comunicação, até ao nível do conformismo, da conivência com a ordem, qualquer ordem estabelecida." 
Falamos "... do homem que, ombro a ombro com os oprimidos, empunhando a palavra como uma enxada ou uma arma, encontrou ou pelo menos procurou na linguagem um contorno para o silêncio que há no vento, no mar, nos campos."


              CANÇÃO DO CAVADOR

Não há cavador só do exterior
Desgastou-o a terra tornou-se terra
fechou-lhe a boca gretou-lhe a pele
não há cavador só do exterior

Não há cavador só do exterior
Da fome é sua cor é tão pobre que não conhece o calor
a vida mirrou-o o senhor usou-o
não há cavador só do exterior

Não há cavador só do exterior
 Fez um poço tão fundo que cabe lá dentro o mundo
a terra fez nele uma ferida e ele deixou a mulher parida
não há cavador só do exterior

Não há cavador só do exterior
Arroteou montes fez correr fontes
regos rugas na cara que o choro fura
não há cavador só do exterior

Não há cavador só do exterior 
Ele a cuspir nas mãos e a cavar a chuva a cair o sol a queimar
em casa a mulher foi casar e fiar parir e chorar
não há cavador só do exterior

Não há cavador só do exterior
A terra deixou de dar teve de emigrar
e embora estar fora lhe doa a tudo ele se afeiçoa
não há cavador só do exterior

Não há cavador só do exterior
Cava tudo a eito arranca uma pedra tem uma pedra no peito
uma lasca de pedra num olho e é já de terra o seu corpo velho
não há cavador só do exterior

Não há cavador só do exterior
A enxada sobe a enxada desce e o campo de grão floresce
sai de casa quando o dia nasce volta quando a noite desce
não há cavador só do exterior

Não há cavador só do exterior
Há mãos suas na bandeira do milho na espuma roxa do vinho
passou-lhe até para o gosto o travo do mosto
não há cavador só do exterior

Não há cavador só do exterior
A courela dá a água a flor mas o cavador dá apenas dor
vem de volta da vida só traz uma enxada
não há cavador só do exterior

Não há cavador só do exterior
Só tem pele e osso deixou as palavras nos dias de moço
foi moço e foi forte mas entranhou-se-lhe no corpo a morte
não há cavador só do exterior

Bibliografia consultada:

RUY BELO – Todos os Poemas, Círculo de Leitores, Lisboa, 2000, pp. 267/8 e 478/9

História Universal - Imperialismo Moderno; Guerras Mundiais; A Década de 80, Círculo de Leitores, Lisboa, 1990, p. 255    

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