O Projecto de Cidadania "Dar a vez e a voz aos Cidadãos", partilha este interessante artigo, escrito por Carlos Carujo, sobre a problemática do património, da cidadania e da educação, a propósito da abertura, no dia 6 de Dezembro, das comemorações do Centenário da Mina do Espadanal, realizadas pela EICEL1920, e publicado no jornal "O Riomaiorense".
Podem consultar o programa das comemorações e ler um conjunto de artigos relacionados com a história e a defesa do património mineiro, em: www.oriomaiorense.com
As
cidades transformam-se. Não as podemos querer imóveis, paradas no tempo
da nossa infância, nem devemos fechar-nos no sonho do regresso a um
passado imaginado. Mas também não devemos cair no erro de celebrar a
mudança pela mudança, com a febre da modernização desenfreada do eterno
presente da moda, um tempo sem passado e sem espessura histórica. Ao
exagero regressivo romântico não podemos opor o exagero
pseudo-progressista pós-moderno.
A
voragem produtivista e capitalista tem sido a principal força motriz da
transformação da cidade contemporânea. Assim, tem mandado mais a pressa
do lucro do que o cuidado do planeamento. A ela se juntam processos de
suburbanização, descaracterização, perda de sentimento de pertença e de
vizinhança etc., tendências destruidoras de lugares e de solidariedades.
A cidade arrisca tornar-se um espaço cheio de pessoas mas vazio de
relações, com algumas fachadas actualizadas segundo a estética preferida
no momento mas intrinsecamente feio, atravessado por
disfuncionalidades, homogeneizado por um lado mas feito de distinções
sociais vincadas por outro.
A
contratempo destas transformações encontramo-nos com o património. E é
exactamente por isso que é preciso começar por esclarecer que defender o
património não implica ficar nessa posição do conservadorismo que
procura que tudo fique sempre igual: há coisas que devem mudar, outras
que seria bom que permanecessem e as mudanças tanto podem ser para
melhor ou para pior. É uma questão de escolhas, ou seja, de políticas
públicas.
O
que é então isso do património que parece não se encaixar nesta pressão
para mudar? O património podem ser muitas coisas diferentes: os
monumentos que alguns pensam ser «velharias», os bairros antigos que se
procura «modernizar» à força, os espaços naturais que não estão
«rentabilizados», as praças desenhadas para serem o espaço comum, lugar
de encontros, das controvérsias e das festas. Mas o património é ainda
mais do que isso. É o que permite a cidade reconhecer-se nas suas
identidades contraditórias e plurívocas, nas suas miscigenações e fluxos
de população. O património são ainda as nossas memórias partilhadas, os
modos de dizer, de fazer, de criar que guardamos como nossos.
Esta
diversidade faz ruir a crença comodista que alguns gostam de cultivar
de que não é preciso fazer nada para salvaguardar o património local: o
património seria automaticamente imune à força das mudanças porque o seu
reconhecimento e defesa seriam consensuais... quando muito
discutir-se-ia a sua prioridade no investimento dos dinheiros públicos.
Mas se formos para além de uma visão monumental e estreita do
património, como é fundamental, descobriremos que a concepção sobre o
que pertence a esta esfera de preservação está em discussão permanente.
Uma cidade democrática rediscute o que é o seu património. Ao fazê-lo,
redescobre-se mais rica e enfrenta desafios mais exigentes.
É
importante por isso distinguir. Há um património «domesticado» e fácil,
que o poder político gosta de usar na lapela, que se moldou aos
interesses económicos do turismo e que, por vezes, é como que forçado a
contar uma versão dominante da história que poucos têm paciência e meios
para contestar. Esse, não descurando a sua importância, tem
habitualmente um lugar cativo na cidade. E, depois, há muitos outros
patrimónios esquecidos, insubmissos, subterrâneos. Esses é urgente
resgatar porque estão mais ameaçados: não são (re)conhecidos, o seu
valor não tem preço, as suas subtilezas e temporalidades próprias são
negadas. O passado mineiro de Rio Maior é um bom exemplo de património
subterrâneo. Não apenas no sentido em que parte importante da sua
história foi o trabalho duro debaixo da terra mas sobretudo no sentido
em que se foi sofrendo a sua invisibilização nas consciências e a sua
deterioração no espaço da cidade.
O
que será preciso fazer para salvaguardar o património que se encontre
menorizado? A condição básica é a existência de um poder político
democrático, transparente e independente de interesses económicos
especulativos. E é fundamental que a este se some a força criativa da
cidadania activa, a mobilização dos muitos de que é feita a cidade. Para
que esta mobilização aconteça, é preciso que o património seja vivido
de alguma forma, que a memória o desvele aos nossos afectos, que o
conheçamos e respeitemos. Porque aquilo que não se conhece, não se cuida
e poderá assim ser facilmente destruído pela ganância ou pela incúria.
Portanto, este cuidar para que a cidadania está convocada deverá passar necessariamente por um trabalho de estudo e de educação.
Em
Rio Maior, a cidadania tem vindo a despertar para a importância do
património mineiro que mudou definitivamente a cidade em meados do
século passado. Há já muito conhecimento acumulado que pode permitir
despertar consciências. Assim sendo, uma das tarefas que se coloca agora
será o trabalho educativo sobre este património. Com o património
edificado a deteriorar-se e com a lei da vida a continuar a sua acção
cega que nos rouba os actores sociais que nos poderiam ensinar mais
sobre o passado mineiro, torna-se urgente um plano educativo
multidisciplinar para dar a conhecer aos vários níveis educativos do
concelho a memória dos trabalhadores, os modelos produtivos, a geologia,
o património arquitectónico etc. Todo um currículo local a ser
construído participativamente com especialistas, professores,
associações e os guardiães destas memórias que poderá permitir que as
novas gerações conheçam, cuidem e se mobilizem. É tempo de procurar
aprender para depois transformar a cidade para melhor a partir desta
memória viva.
Carlos Carujo
Sem comentários:
Enviar um comentário